Por Rev. Alan Rennê Alexandrino Lima Eu, porém, vos digo: quem repudiar sua mulher, não sendo por causa de relações sexuais ilícitas, e casar com outra comete adultério [e o que casar com a repudiada comete adultério]. I – INTRODUÇÃO Recentemente, participei de uma reunião de um de nossos concílios. Na ocasião estávamos recebendo um ministro oriundo de outro presbitério. Reza a Constituição da Igreja Presbiteriana do Brasil (CI/IPB), no seu artigo 46, que “a admissão de um ministro que venha de outro Presbitério dependerá da conveniência do Concílio que o admitir, podendo, ainda, este último, procurar conhecer suas opiniões teológicas”.1 Perguntei ao pastor que estava sendo interrogado “até onde deveria ir a subscrição confessional por parte de um ministro presbiteriano”. Sua resposta foi extraordinária: “Até onde essa subscrição não fira o que preceitua a Palavra de Deus”. Até aí tudo bem. O problema foi que ele acabou mencionando um exemplo, que é ponto nevrálgico no evangelicalismo brasileiro. Ele disse o seguinte: “A Confissão de Fé de Westminster permite o segundo casamento da parte inocente no adultério, mas a Bíblia afirma que o segundo casamento só é permitido em caso de morte de um dos cônjuges”. Estava desencadeada a celeuma. Um dos interlocutores se levantou exasperado, questionando se quem era casado pela segunda vez não tinha perdão, se já estava no inferno, entre outras coisas indizíveis (não estou elogiando!). Tal indivíduo está no segundo 1 MANUAL PRESBITERIANO, Constituição da Igreja Presbiteriana do Brasil, (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 23.
casamento, o que explica a sua reação. Além das demais balelas, ele fez uso da passagem mateusina supramencionada para defender e endossar a prática. Ele fez questão de ler bem alto: “Eu, porém, vos digo: quem repudiar sua mulher, não sendo por causa de relações sexuais ilícitas, e casar com outra comete adultério [e o que casar com a repudiada comete adultério]”. Trata-se da velha interpretação que toma a cláusula de exceção (não sendo por causa de relações sexuais ilícitas) como permitindo também o segundo matrimônio por parte da pessoa inocente. Tal episódio despertou em mim o desejo de estudar mais a fundo a passagem de Mateus 19.9, a fim de obter maiores esclarecimentos sobre este assunto que gera tanta preocupação, tanta angústia no meio dos evangélicos de nosso país. Tenho consciência que o assunto é polêmico e costuma levantar poeira onde quer que seja tratado. Não obstante, os argumentos utilizados pelos defensores do casamento entre pessoas divorciadas são de tal deficiência interpretativa bíblica, que me sinto compungido a tomar parte no debate. Por exemplo, a Aliança Evangélica Espanhola, em 1979, publicou um documento intitulado O Divórcio e as Igrejas Evangélicas, foi publicado pela Fraternidade Teológica Latino-americana. Eis um trecho: Será que essa pessoa tem de ficar indefinidamente condenada à solidão e à amargura da frustração e da desesperança, com todos os sérios problemas espirituais e psicológicos inerentes a tal estado? Pode-se argumentar que a graça de Deus é suficiente para a superação dessas dificuldades. Certo. E em muitos casos, por meio dessa graça, o novo convertido, que viu seu casamento desfeito, passa a viver em uma esfera de magníficas realizações, tanto em nível humano como espiritual, sem necessidade de um novo casamento. Mas, o que fazer, quando, por causa de uma fé débil ou outras limitações, uma pessoa não é capaz de superar o divórcio e vê como única saída e solução uma nova união matrimonial?2 2 Jorge E. Maldonado (ed.), Fundamentos Bíblico-Teológicos do Casamento e da Família, (Viçosa-MG: Ultimato, 1996), 167, 168.
A citação está carregada de apelo às emoções na tentativa de sensibilizar os contrários. Entretanto, a minha convicção, e creio que também a dos que defendem o segundo casamento, é que apenas a Bíblia deve definir nossas crenças e também nossas práticas. Portanto, ela é o nosso tribunal superior. Primeiramente, analisaremos a passagem de Mateus 19.9, além de outras pertinentes ao assunto, em seguida, trataremos da afirmação da Confissão de Fé de Westmisnter. II – A PASSAGEM CONTROVERSA Devemos ler mais uma vez o versículo 9 de Mateus 19: “Eu, porém, vos digo: quem repudiar sua mulher, não sendo por causa de relações sexuais ilícitas, e casar com outra comete adultério [e o que casar com a repudiada comete adultério]”.3 A grande questão sobre esse versículo é se, a cláusula de exceção abarca o segundo casamento da parte inocente ou ela está restrita apenas à permissão de divórcio. A priori, é preciso que o leitor tenha conhecimento que compartilho da opinião de que o segundo caso é o conceito bíblico. Razões para tal convicção serão apresentadas a seguir. Além disso, os defensores do recasamento só conseguem aparente apoio nesta passagem. Em toda a Escritura somente Mateus 19.9 parece fornecer subsídios para uma prática tão difundida em nossos dias. Sobre isso, Engelsmaafirma: Há um texto na Bíblia que poderia parecer aprovar o novo casamento após o divórcio. Um texto! Se entendido como novo casamento aprovado, este texto aprovaria o novo casamento somente da “parte inocente”, isto é, a pessoa casada cuja esposa (ou esposo) cometeu adultério. Todos os outros novos casamentos são proibidos, sendo considerados como adultério.4 3 A parte que se encontra entre colchetes é uma leitura variante presente em alguns manuscritos. Ela não entrará em discussão no presente artigo. 4 David Engelsma, Divórcio e Novo Casamento: Mateus 19:9. pág. 2. Artigo extraído do site http://www.monergismo.com. Acessado em 07/07/2006.
2.1. O TEXTO GREGO5 le,gw de. u`mi/n o[ti o]j a'n avpolu,sh| th.n gunai/ka auvtou/ mh. evpi. pornei,a| kai. gamh,sh| a;llhn moica/taiÅ (Novum Testamentum Graece. Bárbara e Kurt Aland. 27ª Ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1994). 2.2. ANÁLISE MORFOLÓGICA le,gw – Verbo indicativo presente ativo, 1ª pessoa do singular de le,gw (dizer) – “digo”. de. – Conjunção coordenativa – “porém”. u`mi/n – Pronome pessoal dativo, 2ª pessoa do plural – “avós”. o[ti – Conjunção Subordinativa – “que”. o]j – Pronome relativo nominativo masculino singular – “quem”. a'n – Partícula verbal. Não traduzível. avpolu,sh| - Verbo subjuntivo aoristo ativo, 3ª pessoa do singular de avpolu,w (divorciar) – “se divorciar”. th.n – Artigo definido acusativo feminino singular – “da”. gunai/ka – Substantivo acusativo feminino singular de gunh, – “mulher”, “esposa”. auvtou/ - Pronome genitivo masculino, 3ª pessoa do singular – “dele”, “seu”. mh. – Partícula negativa enfática – “não”. evpi. – Preposição dativo – “por”.
5 O texto do NA 27 aqui citado se encontra na Bíblia Sacra, Utriusque Testamenti: Editio Hebraica e Graeca, (Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2002).
pornei,a – Substantivo dativo feminino singular de pornei,a – “fornicação”. kai. – Conjunção coordenativa – “e”. gamh,sh| - Verbo subjuntivo aoristo ativo, 3ª pessoa do singular de game,w (casar) – “se casar”. a;llhn – Adjetivo indefinido acusativo feminino singular de a;lloj – “outra”. moica/tai – Verbo indicativo presente passive, 3ª pessoa do singular
de moica,omai (adulterar) – “adultera”. 2.3. TRADUÇÃO LITERAL “Digo, porém, a vós, que quem se divorciar da sua mulher sem ser por causa de fornicação, e casar com outra, adultera”. 2.4. ESTRUTURA DO VERSÍCULO 1ª ORAÇÃO: le,gw de. u`mi/n (Digo, porém, a vós); 2ª ORAÇÃO: o[ti o]j a'n avpolu,sh| th.n gunai/ka auvtou/ mh. evpi. pornei,a (que quem se divorciar da sua mulher sem ser por fornicação); 3ªORAÇÃO: kai. gamh,sh| a;llhn (e casar com outra); 4ª ORAÇÃO: moica/tai (adultera). 2.5. COMENTÁRIO SOBRE A ESTRUTURA DO VERSÍCULO Como na sintaxe da língua grega a quantidade de verbos determina a quantidade de orações, podemos afirmar que a passagem de Mateus 19.9 consiste de um versículo com quatro orações. A primeira oração: le,gw de. u`mi/n, apresenta o Senhor Jesus Cristo como o seu sujeito, visto que é ele quem fala aos discípulos. Já a segunda oração: o[ti o]j a'n avpolu,sh| th.n gunai/ka auvtou/ mh. evpi. pornei,a, possui sujeito indeterminado, implícito no pronome relativo o]j (quem). A mesma coisa acontece com as duas últimas orações: kai.
gamh,sh| a;llhn e moica/tai. Conclui-se que aqui, Jesus está falando acerca de um absoluto, uma verdade universal. Suas palavras aplicam-se a todo e qualquer indivíduo que for enquadrado na denúncia feita. A fim de esclarecimento sobre o controverso assunto do segundo matrimônio, uma pergunta surge e grita para ser feita: Porque a cláusula de exceção (sem ser por causa de fornicação), refere-se apenas à permissão para o divórcio, movido pela parte inocente, e não ao novo casamento? A resposta a tal questionamento é: Por causa da Conjunção coordenativa kai. (e). Esta conjunção foi empregada por Mateus na função copulativa, ou seja, ela foi empregada para juntar ou ligar elementos num período. No versículo em questão, a conjunçãokai. aparece antes do verbo gamh,sh| (casar), o que lhe dá a acepção adjuntiva, o que quer dizer que ela junta uma outra frase ao período sem prejudicar o entendimento, caso ela não existisse. De forma prática, o versículo 9 de Mateus 19 poderia se constituir da seguinte forma: “Digo, porém, a vós, que quem se divorciar da sua mulher sem ser por causa de fornicação, adultera”. Nesse caso, Jesus estaria qualificando apenas um único pecado: o divórcio. Ainda assim, faria sentido. Entretanto, quando Jesus pronuncia a frase “e casar com outra”, ele está introduzindo um segundo pecado contra o Sétimo Mandamento. Dois pecados são listados em Mateus 19.9: divórcio e novo casamento. Outra questão interessante na fraseologia do versículo 9, é o lugar onde o termo moica/tai (adultera) aparece. O fato deste verbo aparecer no final do versículo não se estabelece algo acidental. Ele foi colocado ali com um propósito bem definido. A expressão “adultera” qualifica não apenas o pecado do divórcio, mas sim dois, de maneira que ela poderia ser duplicada no texto: “Digo, porém, a vós, que quem se divorciar da sua mulher sem ser por fornicação, adultera, e casar com outra, adultera”. Adultério não se limita a repudiar o cônjuge por outra coisa que não infidelidade. O seu conceito é bem mais amplo. Adultério também envolve casar com outra pessoa o cônjuge
estando ainda vivo. O Rev. Thomas Miersma é de opinião semelhante. Ele diz o seguinte: “Note que ao dar essa permissão Jesus está dando a única justificativa para o divórcio e não um fundamento para o recasamento”.6 Ademais, para que o segundo casamento fosse contemplado pela cláusula de exceção, mh. evpi. pornei,a (sem ser por fornicação), a construção gramatical do versículo deveria ser ligeiramente diferente. Por exemplo, a redação do versículo é a seguinte: le,gw de. u`mi/n o[ti o]j a'n avpolu,sh| th.n gunai/ka auvtou/ mh. evpi. pornei,a| kai. gamh,sh| a;llhn moica/tai(Digo, porém, a vós, que quem se divorciar da sua mulher sem ser por fornicação e casar com outra, adultera). Perceba que a cláusulade exceção aparece após a menção ao divórcio e antes do casamento com uma segunda pessoa. Para a satisfação daqueles que apóiam o segundo matrimônio, a redação dotexto deveria ser a seguinte: le,gw de. u`mi/n o[ti o]j a'n avpolu,sh| th.n gunai/ka auvtou/ kai. gamh,sh| a;llhn mh. evpi. pornei,a| moica/tai(Digo, porém, a vós, que quem se divorciar da sua mulher e casar com outra, sem ser por fornicação, adultera). Neste caso, e somente neste, a cláusula apareceria (note-se o “apareceria”) contemplando uma segunda união. Entretanto, não é esse o caso. 2.6. O TESTEMUNHO DOSSINÓTICOS Mateus 19.9 possui como passagens paralelas as dos evangelhos de Marcos 10.11, e Lucas 16.18. É imprescindível uma observação sobre o testemunho dos sinóticos sobre este caso. Marcos 10.11 diz o seguinte: “E ele lhes disse: Quem repudiar sua mulher e casar com outra comete adultério contra aquela” (kai. le,gei auvtoi/j\ o]j a'n avpolu,sh| th.n gunai/ka auvtou/ kai. gamh,sh| a;llhn moica/tai evpV auvth,n\).7 6 Thomas Miersma, Sobre a Proibição do Recasamento Após o Divórcio. pág. 1. Artigo extraído do site http://www.monergismo.com. Acessado em 25/04/2007. 7 Novum Testamentum Graece. Bárbara e Kurt Aland. 27ª Ed. (Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft).
Já em Lucas 16.18 está escrito: “Quem repudiar a sua mulher e casar com outra comete adultério; e aquele que casa com a mulher repudiada pelo marido também comete adultério” (Pa/j o` avpolu,wn th.n gunai/ka auvtou/ kai. gamw/n e`te,ran moiceu,ei( kai. o` avpolelume,nhn avpo. avndro.j gamw/n moiceu,ei).8 É perceptível que o único evangelista sinótico que registrou a cláusula de exceção foi Mateus. Nem Marcos nem Lucas a mencionam. Como entender e harmonizar estas narrativas sinóticas? O nosso primeiro passo é compreendermos a diferença existente no público-alvo de cada evangelista. Isso, certamente, nos ajudará a entendermos o porquê de somente o Evangelho de Mateus trazer a cláusula “sem ser por fornicação”. Mateus escreveu o seu evangelho tendo em mente um público predominantemente judaico. Outra teoria possível, é que “os primeiros leitores desse evangelho eram cristãos-judeus familiarizados com os costumes judaicos e com o AT. O seu objetivo era mostrar e demonstrar aos seus patrícios que Jesus era o Messias de Israel”.9 William Hendriksen é de opinião semelhante: De uma forma geral pode-se dizer que o propósito desse Evangelho foi conquistar plenamente os judeus para Cristo; ou seja, conquistar aqueles ainda não convertidos e fortalecer aqueles já convertidos. O caráter hebraizante do Evangelho de Mateus, como se acha descrito nas páginas precedentes, revela que esse foi o seu alvo. Com o fim de conseguí-lo, a ênfase é calcada no fato de que Jesus é deveras o Messias há muito esperado e amplamente anunciado nas Escrituras hebraicas.10 Isso se deduz, entre outras coisas, pelo fato de Mateus ser o evangelista que mais cita passagens veterotestamentárias. Marcos e Lucas, por sua vez, escreveram os seus evangelhos para públicos predominantemente gentílicos. O primeiro, por exemplo, “foi escrito 8 Ibid. 9 Gerhard Hörster, Introdução e Síntese do Novo Testamento, (Curitiba: Esperança, 1996), 38. 10 William Hendriksen, Comentário do Novo Testamento: Mateus, Vol. 1, (São Paulo: Cultura Cristã, 2001), 145.
para satisfazer o pedido urgente do povo de Roma por um resumo dos ensinos de Pedro”.11 Já o segundo, apresenta o destinatário do seu evangelho em 1.4, um gentio de nome Teófilo, que significa “amado por Deus”. Voltando à questão do divórcio, algumas perguntas interessantes surgem: Por que Mateus se volta especificamente para os maridos? Por que Marcos e Lucas universalizam o ensinamento sobre o divórcio e novo casamento? Mais uma vez, é de grande valia a ajuda prestada pelo Dr. William Hendriksen: “Mateus estava escrevendo primeiramente para os judeus, entre os quais era bem conhecido o ato de o marido repudiar a esposa, mas não o contrário. Marcos, ao escrever para os gentios, inclui as duas possibilidades (10.11, 12)”.12 De igual modo, a presença da cláusula de exceção apenas no evangelho mateusino é perfeitamente explicável. Para tanto, precisamos analisar duas palavras presentes no versículo: pornei,a (fornicação) e moica,omai (adulterar). A palavra pornei,a aparece cerca de vinte e seis vezes em todo o Novo Testamento, e se refere a “todo tipo de relação extramarital, relações sexuais ilegais ou antinaturais, imoralidade sexual e prostituição; distinto de adultério no mesmo relacionamento extramarital”.13 Nas obras do orador ateniense Demóstenes, esse termo é empregado para se referir ao “intercurso sexual ilícito em geral”.14 No entanto, para termos um entendimento específico de pornei,a precisamos observar o seu uso em algumas passagens neotestamentárias: “Eu, porém, vos digo: qualquerque repudiar sua mulher, exceto em caso de relações sexuais ilícitas, a expõe a tornar-se adúltera; e aquele que casar com a repudiada comete adultério” (Mateus 5.32); “Porque do coração procedem maus 11 William Hendriksen, Comentário do Novo Testamento: Marcos, (São Paulo: Cultura Cristã, 2003), 28, 29. 12 William Hendriksen, Comentário do Novo Testamento: Mateus, Vol. 1, 427. 13 Friberg Lexicon in BIBLEWORKS 7.0. 14 Thayer’s Greek Lexicon in BIBLEWORKS 7.0.
desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias” (Mateus 15.19); “Vós fazeis as obras de vosso pai. Disseram-lhe eles: Nós não somos bastardos; temos um pai, que é Deus” (João 8.41); “Geralmente, se ouve que entre vós imoralidade e imoralidade tal, como nem mesmo entre os gentios, isto é, haver quem se atreva a possuir a mulher de seu próprio pai” (1 Coríntios 5.1); “mas, por causa da impureza, cada um tenha a sua própria esposa, e cada uma, o seu próprio marido” (1 Coríntios 7.2). Estas passagens, principalmente João 8.41, 1 Coríntios 5.1 e 7.2, dão a entender que pornei,a é um pecado cometido fora do casamento, por aqueles que ainda não estão casados. Já o termo moicei,a e seus derivados ocorrem cerca de vinte e duas vezes no Novo Testamento. Algumas ocorrências da palavra “adultério” nas Escrituras são muito reveladoras: “Porque do coração procedem maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias” (Mateus 15.19); “Os escribas e fariseus trouxeram à sua presença uma mulher surpreendida em adultério e, fazendo-a ficar de pé no meio de todos, disseram a Jesus: Mestre, esta mulher foi apanhada em flagrante adultério” (João 8.3, 4). Adultério, nestes casos, é um pecado cometido dentro do relacionamento do casamento. Wiliiam Hendriksen comentando o texto paralelo de Marcos 10.11, faz uma exposição interessante sobre estes dois termos: Sempre que é possível fazer uma distinção entre moicei,a e pornei,a, a primeira palavra refere-se ao adultério, que é, basicamente, o relacionamento sexual pecaminoso com alguém que não é o seu parceiro matrimonial. O termo pornei,a é muito mais amplo em significado e refere-se, basicamente, a toda imoralidade sexual. Assim, a imoralidade sexual voluntária, envolvendo pessoas solteiras, seria pornei,a, e não moicei,a.15 15 William Hendriksen, Comentário do Novo Testamento: Marcos, 482.
A conclusão é que pornei,a e moicei,a são dois pecados distintos um do outro. Isso pode ser confirmado pela afirmação do apóstolo Paulo em 1 Coríntios 6.9, 10: “Ou não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? não vos enganeis: nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem roubadores herdarão o reino de Deus”.16 Simon Kistemaker comentando esta passagem também faz a mesma distinção. Ele diz que o apóstolo Paulo “menciona em primeiro lugar os imorais. Ele usa o termo para descrever relações sexuais ilícitas ou entre uma pessoa casada e outra não casada, ou entre duas pessoas não casadas”.17 Sobre a referência aos “adúlteros”, Kistemaker prossegue dizendo que, “a primeira expressão grega, moichoi (adúlteros), descreve o pecado sexual que uma pessoa casada comete com outra que está ou não está casada; resulta em quebrar o vínculo do casamento”.18 O Catecismo Maior de Westminster contempla esta diferença, quando da exposição sobre os pecados proibidos no sétimo mandamento. A resposta é a seguinte: “Os pecados proibidos no sétimo mandamento, além da negligência dos deveres exigidos, são o adultério, a fornicação, o rapto, o incesto, a sodomia e todas as concupiscências desnaturais...”.19 Johannes Geerhardus Vos comentando o Catecismo Maior , diz que o resultado da psicologia que enfatiza a “auto-expressão” predominante em nossos dias “tem sido a diminuição geral 16 O texto original traz a seguinte redação: “"H ouvk oi;date o[ti a;dikoi qeou/ basilei,an ouv klhronomh,sousinÈ mh. plana/sqe\ ou;te po,rnoi ou;te eivdwlola,trai ou;te moicoi. ou;te malakoi. ou;te avrsenokoi/tai ou;te kle,ptai ou;te pleone,ktai( ouv me,qusoi( ouv loi,doroi( ouvc a[rpagej basilei,an qeou/ klhronomh,sousin”. Aqui duas classes de pecadores são diferenciados: po,rnoi (traduzido pela RA como “impuros”) e moicoi (adúlteros). 17 Simon Kistemaker, Comentário do Novo Testamento: 1 Coríntios, (São Paulo: Cultura Cristã, 2004), 267. Ênfase acrescentada. 18 Ibid. 19 O CATECISMO MAIOR DE WESTMINSTER, Pergunta 139, (São Paulo: Cultura Cristã, 2005), 181.
da oposição aos pecados de fornicação, adultério, divórcios e casamentos em desacordo com a Bíblia”.20 Esta compreensão acerca dos termos pornei,a e moicei,a nos permite apreendermos o sentido da cláusula de exceção presente no Evangelho de Mateus. Recordando o que foi dito acima, Mateus escreveu o seu evangelho tendo os judeus em mente. Assim sendo, Mateus mostra aos judeus que, o ensinamento de Jesus a respeito do divórcio é mais rígido do que tem sido dito por aí. Argumenta-se que o divórcio é permitido quando há infidelidade sexual de uma das partes dentro do casamento. No entanto, pelo estudo feito sobre os dois termos-chave de Mateus 19.9, pode-se concluir com segurança que a permissão emitida por Jesus para o divórcio é válida somente quando uma das partes cometeu fornicação quando ainda solteira. O Dr. David L. Brown faz uma exposição sobre a cláusula de exceção à luz da prática judaica do noivado, muito elucidativa sobre esse ponto. Ele explica que os judeus eram muito criteriosos sobre os termos usados para definir certas práticas pecaminosas. A citação é extensa, porém de grande relevância: Na sociedade judaica, fornicação (porneia) e adultério (moichao) eram dois pecados diferentes. O adultério era um pecado cometido pela pessoa cujo casamento tinha sido consumado, depois do período de noivado. Mas, uma pessoa que tivesse relações sexuais com alguma outra pessoa que não o seu noivo não cometia adultério, mas fornicação. Divórcio só era permitido para comportamento sexual impróprio durante o período de noivado. A melhor ilustração disso é achada em Mateus 1:18-19: “Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Estando Maria, sua mãe, desposada com José, antes de se ajuntarem, achou-se ter concebido do Espírito Santo. Então José, seu marido, como era justo, e a não queria infamar, intentou deixá-la secretamente”. (Em caso de você ter quaisquer dúvidas quanto à natureza do pecado que José pensou que Maria tivesse cometido, simplesmente olhe para João 8:41. O pecado suposto era fornicação, não adultério.21 20 Johannes Geerhardus Vos, Catecismo Maior de Westminster Comentado, (São Paulo: Os Puritanos, 2007), 428. 21 David L. Brown, Casamento, Divórcio e Segundo Casamento, pág. 4. Artigo extraído do site http://www.monergismo.com. Acessado em 03/05/2007.
À guisa de conclusão sobre este ponto, a cláusula de exceção aparece apenas no evangelho mateusino porque o seu autor tinha como propósito alcançar pessoas que viviam num contexto onde os maridos se divorciavam de suas esposas por qualquer motivo. Contra isso, Mateus registra o ensinamento de Jesus permitindo o divórcio apenas em caso de imoralidade sexual praticada no período de noivado. Exatamente por isso, a expressão “sem ser por fornicação” contempla única e exclusivamente a permissão para o divórcio, não para o segundo casamento. O testemunho dos evangelhos de Marcos e Lucas, nos quais a cláusula de exceção está ausente, confirma esta verdade. Segundo casamento, segundo Jesus, é pecado. É uma verdade dura, mas ainda é a verdade. Dura Lex, Sed Lex! Entretanto, não há, absolutamente, nenhuma circunstância segundo a qual o novo matrimônio ter permissão bíblica? Que a Escritura fale!
III – O TESTEMUNHO APOSTÓLICO Uma coisa que me espanta, é a mania deplorável de algumas pessoas ao se apegarem a textos isolados ou obscuros, na vã tentativa de formular conceitos, regras e práticas para o deleite de sua mente carnal. Muitos se apóiam em textos como Mateus 19.9, para justificarem o pecado. Desconsideram o caráter orgânico e progressivo da revelação bíblica. Esquecem-se da regra da analogia da fé, a Bíblia interpretando a própria Bíblia. Sobre esse ponto, quando examinamos o testemunho dado pelo apóstolo Paulo sobre a união matrimonial podemos perceber que há apenas uma única possibilidade em que o novo casamento é permitido. Duas passagens são claras sobre esse tópico. A primeira, é Romanos 7.2, 3, onde o apóstolo diz o seguinte: “Ora, a mulher casada está ligada pela lei ao marido, enquanto ele vive; mas, se o mesmo morrer, desobrigada ficará da lei conjugal. De sorte que será considerada adúltera se, vivendo ainda o marido, unir-se com outro homem; porém, se morrer o marido, estará livre da lei e não será adúltera se contrair novas núpcias”. É bem
verdade que o assunto principal de Paulo no capítulo 7 de Romanos é a Lei e seus efeitos na vida do indivíduo justificado. Não obstante, creio que esta passagem é clara o bastante no uso da ilustração matrimonial para dispensar maiores comentários. Contudo, o “analfabetismo funcional teológico” de muitos exige algumas explicações sobre a afirmação apostólica sobre a dissolubilidade do matrimônio por Deus na morte e o segundomatrimônio. A primeiraparte do versículo 2 diz: “Ora, a mulher casada está ligada pela lei ao marido...”. Há uma ligação entre os cônjuges. O verbo de,w significa literalmente “vincular”22, “amarrar, atar com vínculo legal ou moral, tal como casamento”23. Então, os cônjuges estão amarrados pelo vínculo legal ou moral do matrimônio. Entretanto, tal ligação deve durar até quando? O divórcio em caso de fornicação por um dos cônjuges dissolveria este vínculo? A resposta é: Não! Paulo diz que a ligação da mulher ao marido dura “enquanto ele vive”. Isto quer dizer que somente a morte dissolve os laços do casamento. Quando isto acontece, de acordo com o pensamento apostólico, a parte viúva tem liberdade para contrair novas núpcias: “mas, se o mesmo morrer, desobrigada ficará da lei conjugal”. Todavia, quando não é esse o caso, quando uma das partes passa a se relacionar maritalmente com outrem, diz o apóstolo Paulo, o adultério é uma realidade presente: “De sorte que será considerada adúltera se, vivendo ainda o marido, unir-se com outro homem”. Será que Paulo não conhecia o ensinamento de Jesus em Mateus 19.9? Podemos afirmar com confiança de que ele estava familiarizado com o ensinamento de Jesus conforme se encontra no evangelho mais antigo, o de Marcos, escrito entre os anos 40-50.24 Paulo escreveu Romanos no ano 57 d.C., aproximadamente, enquanto o Evangelho de Mateus foi escrito em uma data estimada entre os anos 64 e 70 d.C. Isso 22 Waldyr Carvalho Luz, Novo Testamento Interlinear, (São Paulo: Cultura Cristã, 2003), 525. 23 Harold K. Moulton, Léxico Grego Analítico, (São Paulo: Cultura Cristã, 2008), 95. 24 Esta datação é sugerida por William Hendriksen, Comentário do Novo Testamento: Marcos, 27.
significa que a cláusula de exceção usada por muitos para justificar o novo matrimônio não era conhecida por Paulo. Por conseguinte, o ensinamento apostólico em Romanos 7.2, 3 ratifica o absoluto, de que somente Deus, por intermédio da morte de um dos cônjuges, pode dissolver os benditos e sagrados laços do matrimônio. Comentando a ilustração nestes dois versículos, Hendriksen diz que, “segundo a Escritura, o casamento é um compromisso muitíssimo solene. É para toda a vida (Gn 2.22- 24; Ml 2.13-16). Isso implica que, se enquanto o esposo ainda vive a esposa o rejeita e casa com outro homem, ela será tida como adúltera”.25 Visando deixar claro que não estamos “sozinhos nesse barco”, creio que é salutar citar as opiniões de outros mestres eruditos. Por exemplo, John Murray diz que, “o argumento principal da ilustração é que a morte do esposo liberta a mulher dos laços do casamento. A atenção é focalizada sobre a mulher estando presa e sendo liberta, presa enquanto o seu marido estivera vivo e liberta no evento da morte dele”.26 Adolph Pohl, por sua vez, afirma que, “a força de compromisso da lei conjugal não vigora além da morte. A morte divorcia um matrimônio... e, assim, dissolve o estado anteriorda mulher em favor de uma nova condição”.27 C. E. B. Cranfield, vagamente assevera que, “a ocorrência de morte produz mudança decisiva no tocante ao relacionamento com a lei”.28 A exposição feita por D. Martyn Lloyd-Jones dessa passagem também é interessante: Mas o princípio que o apóstolo firma é que o casamento, como tal, é algo que não é desfeito por coisa alguma, a não ser pela morte. Contudo – e isto é o que estou ansioso por colocar em termos bem claros – a morte põe fim à relação. Veremos como o apóstolo 25 William Hendriksen, Comentário do Novo Testamento: Romanos, (São Paulo: Cultura Cristã, 2001), 285. 26 John Murray, Comentário Bíblico Fiel: Romanos, (São José dos Campos: Fiel, 2003), 268. 27 Adolph Pohl, Comentário Esperança: Carta aos Romanos, (Curitiba: Esperança, 1999), 116. 28 C. E. B. Cranfield, Carta aos Romanos, (São Paulo: Paulinas, 1992), 148.
explica isso. O casamento é uma relação permanente, cuja relação é terminada, e só pode ser terminada, pela morte.29 Já a Mente da Reforma, João Calvino, comenta de forma magistral a passagem, dizendo o seguinte: “Uma mulher, de acordo com a lei, está sujeita ao seu esposo, enquanto este vive; de sorte que não pode tornar-se esposa de outro. Depois da morte de seu esposo, contudo, ela se vê livre das amarras da lei, de tal sorte que pode, livremente, casar-se com quem quiser”.30 O absoluto de Romanos 7.2, 3 está claro e límpido. A segunda passagem se encontra em 1 Coríntios 7.39: “A mulher está ligada enquanto vive o marido; contudo, se falecer o marido, fica livre para casar com quem quiser, mas somente no Senhor”. Acontece que, os comentários a respeito da passagem anterior podem ser utilizados também para lançar luz sobre a declaração do apóstolo aos coríntios, visto que os termos são praticamente os mesmos. A única diferença, é que na passagem aos coríntios, Paulo não usa o matrimônio a título de ilustração. Sua mensagem tenciona dar diretrizes absolutas para regular o casamento, literalmente.
IV – E QUANTO À CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER? Como um ato mnemônico, convém lembrar que iniciei o presente estudo narrando os acontecimentos que envolveram a recepção de um ministro presbiteriano vindo de outro presbitério. O que excitou a polêmica foi a sua afirmação de que “a subscrição confessional de um ministro deve ir até onde a Confissão de Fé não contradiga os ensinamentos bíblicos”. Para exemplificar sua resposta, ele disse que não subscrevia o ensinamento da Confissão de Fé de Westmisnter (doravante CFW ou simplesmente Confissão) a respeito do segundo casamento. A CFW afirma o seguinte no Capítulo XXIV, Seção V: 29 D. Martyn Lloyd-Jones, Romanos: Exposição sobre Capítulos 7:1 – 8:4 – A Lei: Suas Funções e Seus Limites, (São Paulo: PES, 2001), 38. 30 João Calvino, Comentário à Sagrada Escritura: Romanos, (São Paulo: Parakletos, 2001), 236, 237.
O adultério ou fornicação, cometido depois de um contrato, sendo descoberto antes do casamento, dá à parte inocente justo motivo de dissolver o contrato; no caso de adultério depois do casamento, à parte inocente é lícito propor divórcio, e, depois de obter o divórcio, casar com outrem, como se a parte infiel fosse morta.31 Antes de quaisquer observações sobre a afirmação da CFW, quero deixar bem claro que, como pastor presbiteriano, subscrevo a Confissão, entendo que ela é a exposição das doutrinas bíblicas mais exata e fiel que existe. Ela é fruto de um concílio impregnado de sábios teólogos. E por isso mesmo, aceito com entusiasmo a afirmação confessional, no sentido de que, “todos os sínodos e concílios, desde os tempos dos apóstolos, quer gerais quer particulares, podem errar, e muitos têm errado; eles, portanto, não devem constituir regra de fé e prática, mas podem ser usados como auxílio em uma e outra coisa”32 (CFW, Capítulo XXXI, Seção III). Creio que a afirmação da CFW a respeito do segundo casamento é uma prova clara de que concílios erram, pois não são inspirados. Com base na exposição de Mateus 19.9 supra, percebemos que o primeiro erro da CFW diz respeito ao uso intercambiável de “adultério” e “fornicação”. Ela cita os dois pecados como se fossem um só, quando, na verdade, são pecados de um mesmo gênero, mas de espécie distintas. O segundo equívoco diz respeito às novas núpcias por parte da pessoa inocente, aquela que foi a vítima da infidelidade sexual. A dicta probantia33 do Capítulo XXIV, Seção V faz referência à passagem de Romanos 7.2, 3.34 O grande problema é que aqui, o apóstolo Paulo, ao fazer uso da ilustração tirada do matrimônio entre um homem e uma mulher, está falando de morte no sentido 31 A CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER, (São Paulo: Cultura Cristã, 2003), 194. 32 Ibid, 229. 33 As passagens bíblicas utilizadas para apoiar e comprovar as formulações da Confissão de Fé de Westminster e das demais confissões reformadas. 34 A. A. Hodge, Confissão de Fé de Westminster Comentada por A. A. Hodge, (São Paulo: Os Puritanos, 1999), 415. É interessante como no texto da CFW adotado pela editora Cultura Cristã a passagem de Romanos 7.2, 3 está ausente.
físico, literal. Paulo não está dizendo: “Mas, fazendo de conta que o marido está morto, a mulher está livre para casar”. Não, muito pelo contrário! Paulo está falando de morte real, não virtual! David Engelsma, abordando este problema (baseando seu argumento em 1 Coríntios 7.39) acerta em cheio quando afirma: O problema com isto é que 1 Coríntios 7.39 não está se referindo a uma morte fictícia, virtual, “faz de conta” e irreal. O apóstolo não diz, “mas se ela ou alguém mais decidir considerar seu marido como morto, ela está livre para casar com quem quiser”. A morte em 1 Coríntios 7.39, a qual é a única que dissolve o laço do casamento, de forma que a pessoa casada pode se casar com outra, é uma morte real e física – morte que quebra todos os laços terrenos, morte que coloca o corpo (que de outra forma deveria estar na cama com sua esposa) do homem na sepultura.35 Causou-me estranheza o fato de A. A. Hodge, ao comentar o trecho da CFW sob análise, não dizer absolutamente nada sobre o segundo casamento da parte inocente. Ele teceu comentários apenas sobre as bases do divórcio. Eis: Tais causas, contudo, não dissolvem ipso facto, o vínculo matrimonial, mas apenas dá o direito à parte inocente, se assim o quiser, de exigir que o mesmo seja dissolvido pela autoridade competente. E se exigirem a dissolução, não são entregues à sua própria sorte, no caso, mas devem sair em busca da defesa de seus direitos das mãos das autoridades públicas e segundo a lei da terra.36 Por qual razão Hodge não disse absolutamente nada sobre o segundo casamento? Será que ele discordava da CFW ao mesmo tempo em que a respeitava, a ponto de se omitir nesse sentido? Não há como saber. Não posso aqui dar uma resposta absoluta, apesar de que o silêncio do eminente teólogo de Princeton é inquietante. Todavia, há uma explicação plausível, assim penso, para a presença da permissão para o segundo casamento na Confissão. Acredito que devemos procurar observar o contexto da confecção da CFW para podermos estabelecer 35 David Engelsma, Divórcio e Novo Casamento: Mateus 19:9. pág. 3. Artigo extraído do site http://www.monergismo.com. Acessado em 07/07/2006. 36 A. A. Hodge, Confissão de Fé de Westminster Comentada por A. A. Hodge, 417.
melhor juízo sobre a afirmação em questão. David Engelsma, que entende corretamente, que quando a Escritura fala da morte de um dos cônjuges como uma morte real, atribui à cláusula “à parte inocente é lícito propor divórcio, e, depois de obter o divórcio, casar com outrem, como se a parte infiel fosse morta”, o status de “estranho, assustador e obviamente falso decreto de que o adultério efetivamente torna o adúltero – a ‘parte culpada’ – morto no sentido de 1 Coríntios 7.39”.37 Engelsma parece partir do pressuposto que o entendimento penal para o adultério na cultura britânica dos séculos XVI e XVII é o mesmo dos nossos dias. No entanto, uma rápida olhadela na história nos ajudará a compreender o porquê da permissão existente na CFW. Os historiadores nos mostram que o adultério na Inglaterra dos séculos XVI e XVII era punido com a morte. Alguém acusado de adultério era julgado e, posteriormente, executado. Especificamente, a pena era a decapitação. Um exemplo clássico do que estou afirmando é a atitude do rei Henrique VIII para com a sua segunda esposa, Ana Bolena. A grande ambição de Henrique era um filho varão. Isso porque eletinha convicção “que a Inglaterra precisava de um monarca homem para substituí-lo na direção do país em período de turbulência internacional”.38 Como a sua primeira esposa, Catarina de Aragão, deu-lhe uma filha, Henrique arrumou meios de conseguir o divórcio. Ao romper com a Igreja Católica Romana, Henrique obteve o divórcio tão esperado em 1533. O grande problema foi que, o tão aguardado filho varão não veio de Ana Bolena. Pelo contrário, Ana deu a Henrique uma filha, a quem chamaram de Elizabeth. Isso foi motivo para que o rei se cansasse de sua segunda esposa. Então, “em 1536”, diz Cairns, “Ana foi julgada e decapitada sob a acusação de adultério”.39 Com a morte de Ana 37 David Engelsma, Divórcio e Novo Casamento: Mateus 19:9. pág. 3. Artigo extraído do site http://www.monergismo.com. Acessado em 07/07/2006. 38 Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos: Uma História da Igreja Cristã, (São Paulo: Vida Nova, 2003), 267. 39 Ibid, 269.
Bolena, Henrique VIII se viu livre para ter uma terceira esposa. Em seguida, ele casou com Jane Seymour, com quem teve um filho do sexo masculino, chamado Eduardo. Já dá para se ter uma idéia clara de que, na cultura da época, adultério era considerado como digno de ser punido com a morte. Reforçando este raciocínio, precisamos lembrar que a Assembléia de Westminster, concílio que produziu a CFW, contou com delegados também da Escócia.40 Por que essa informação é relevante? Porque ela nos ajuda a entendermos o ambiente em que os puritanos autores da Confissão estavam inseridos. Arthur Herman faz a seguinte afirmação sobre a Reforma na Escócia: Na linha do Calvinismo, a igreja presbiteriana pretende erradicar a influência da igreja católica na Escócia. Recusa a idolatria de santos, relíquias e de figuras ornamentais. Acabou com determinadas formas de divertimento coletivo tais como o carnaval ou as celebrações de Maio. É imposta uma estrita proibição do trabalho aos domingos, quase tão rigorosa como a dos judeus ortodoxos no Shabbat – pessoas podiam ser presas por depenar uma galinha no domingo. Os jogos de cartas foram banidos. A igreja presbiteriana escocesa professa o comportamento purista (ou puritano) de todos segundo a moral cristã e seus valores. Fornicação é punida severamente, mesmo com o exílio. Adultério é punido com a morte.41 Por esse prisma podemos compreender melhor a afirmação da Confissão, quando ela diz que, “à parte inocente é lícito propor divórcio, e, depois de obter o divórcio, casar com outrem, como se a parte infiel fosse morta”. Os autores da Confissão, os puritanos ingleses e escoceses, fizeram esta afirmação porque naquela época, quem era declarado culpado de adultério, era executado. Então, creio que é dessa forma que deve ser entendida esta oração. Entretanto, não vivemos na Inglaterra do século XVII. Hoje, adultério não é mais punido com a pena capital. Exatamente por isso, a sentença da CFW 40 Ao todo, foram seis delegados: os ministros, Alexander Henderson, George Gillespie, Samuel Rutherford e Robert Baillie; e os presbíteros, Lord John Maitland e Sir Archibald Johnston. 41 Arthur Herman, The Scottish Enlightenment, The Scots’ Invention of the Modern World, citado no site http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_da_Esc%C3%B3cia. Acessado em 23/12/2008.
não faz nenhum sentido para nós. Portanto, concordo com Engelsma, quando ele afirma que Paulo fala de morte de um dos cônjuges no sentido real e literal, contudo, discordo de sua análise sobre o suposto arranjo “estranho, assustador e obviamente falso” por parte dos sábios teólogos de Westminster.
V – CONCLUSÃO Com base em todos os dados levantados por este estudo, concluo com a convicção inabalável de que a passagem de Mateus 19.9 não permite nem o divórcio por infidelidade sexual após o matrimônio, nem o segundo casamento de qualquer uma das partes. A única permissão existente no versículo é para fornicação ou imoralidade sexual cometida antes da consumação do vínculo matrimonial. Que o segundo casamento, por qualquer outro motivo que não a morte de um dos cônjuges, é expressamente proibido pelas Sagradas Escrituras. Além disso, a sentença presente no Capítulo XXIV, Seção V não faz nenhum sentido em nossa cultura, visto que o adultério não mais é punido com a pena de morte, como acontecia na Inglaterra dos séculos XVI e XVII. Não obstante, ela fazia muito sentido para os autores da Confissão, visto que naquele contexto o adultério era considerado como digno de morte. Sobre a reunião conciliar, nosso ministro questionado estava certíssimo. Aliás, eu fiz a pergunta sobre a subscrição confessional. Quanto aos que discordaram veementemente, resta-lhes o conformismo ou a busca frenética por outras passagens interpretadas de modo desqualificado, o que eles têm feito, citando passagens como João 4.18 e Deuteronômio 22.23. A eisegese que eles fazem destas passagens é facilmente refutada, porém, é matéria para outro estudo. Que o Senhor da Aliança nos abençoe, dando à Sua Igreja o entendimento correto do matrimônio e convencendo aqueles que se mantém rebeldes por não aceitarem o cristalino ensino da Sua Palavra. SOLI DEO GLORIA! BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
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